quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Três parábolas sobre leitura e reflexão


"Comecemos com a leitura feita por Søren Kierkegaard de Tiago 1.22-27. Aquele que ouve a Palavra de Deus e a segue é como uma pessoa que se olha no espelho e passa a se lembrar do que vê dali em diante. Que tipo de olhar sobre si mesmo no espelho da Palavra de Deus, pergunta ele, é necessário a fim de que se receba uma benção verdadeira? Ele responde que só se beneficia do olhar em direção à Palavra aquele que vai além de observar o espelho para ver a si próprio. Assim, a parábola de Tiago “alerta contra o erro de se passar a examinar o espelho, em vez de olhar-se no espelho”.

Ver a si mesmo no espelho”. A leitura de Kierkegaard dessa imagem bíblica imediatamente nos apresenta um problema de e para a interpretação. O que Kierkegaard quer dizer com “ver a si mesmo”? Estaria ele sugerindo que não há nada no texto, de forma que o leitor descobre apenas a si mesmo nele, ou que só se pode realmente ver a si próprio quando se consegue captar o significado bíblico, digamos, do pecado e da salvação? Em outras palavras, os leitores projetam a si próprios sobre o texto ou descobrem a si próprios no texto? Essa “imagem do espelho” suscita aquilo que acredito seja a pergunta mais importante para as teorias contemporâneas de interpretação, quer da Bíblia quer de qualquer outro livro: existe alguma coisa no texto que reflita uma realidade independentemente da atividade interpretativa do leitor, ou o texto apenas reflete a realidade do leitor?

A segunda parábola de Kierkegaard, “a carta do amante”, é sobre um homem que recebe de sua amada uma carta escrita em língua estrangeira. Desesperado para ler a carta, ele pega um dicionário e começa a traduzir uma palavra por vez. Um conhecido entra, interrompe sua tradução, e diz: “Ah, você está lendo uma carta de sua amada”. O amante responde: “Não, meu amigo, estou aqui me esfalfando com um dicionário. Se você chama isso de leitura, está zombando de mim”. A posição de Kierkegaard é a de que a erudição linguística e histórica não é uma leitura verdadeira. É como examinar e explorar o próprio espelho – como olhar para o espelho, em vez de olhar no espelho. Esse, sugere ele, é o perigo da moderna crítica bíblica.

Na parábola do “decreto real”, Kierkegaard nos pede que imaginemos um país no qual é promulgada uma ordem real. No entanto, em vez de obedecer à ordem, os súditos do rei começam a interpretar. A cada dia, surgem novas interpretações da ordem. Em pouco tempo, a população mal consegue acompanhar a enorme quantidade de interpretações: “Tudo é interpretação – mas ninguém lê a ordem real de forma a poder obedecê-la”.

Ora, a Palavra de Deus é, ao mesmo tempo, carta de amor e decreto real. Nós olhamos para ela ou nela? Nós a seguimos ou a “interpretamos”? Nós nos vemos ou nos projetamos nela? Essas parábolas deveriam estimular os leitores a examinarem a si próprios a fim de verem e estão “na fé” quando buscam o entendimento. Acredito que aquilo que era verdadeiro no tempo de Kierkegaard é ainda mais verdadeiro no nosso tempo. Precisamos examinar a teoria e a prática da interpretação contemporânea para ver se elas se encontram “na fé”, pois alguns leitores tramam privar a Bíblia de sua autoridade por meio da interpretação. Kierkegaard lamenta: “Minha casa será casa de oração; mas vocês fizeram dela um covil de ladrões. E a Palavra de Deus – qual é, segundo seu propósito, e em que nós a transformamos?”.

A moral das parábolas de Kierkegaard é a de que os leitores deixaram de ter o privilégio e a responsabilidade de interpretar com seriedade. O propósito da interpretação não é mais recuperar e relacionar-se com uma mensagem vinda de alguém diferente de nós, mas precisamente evitar tal confronto. O empreendimento da interpretação é um impedimento: constantemente produzir leituras para impedir que se responda ao texto. Qual o objetivo de cada interpretação? A resposta de Kierkegaard é cínica, porém perspicaz: “Olhem mais de perto, e vocês verão que essa é uma forma de defesa contra a Palavra de Deus”. A fim de evitar verem-se a si mesmos nas Escrituras como realmente são, alguns leitores preferem ou olhar para o espelho, ou projetar suas próprias, e mais lisonjeiras, imagens."

Fonte: VANHOOZER, Kevin J. Há um significado neste texto? Interpretação bíblica: os enfoques contemporâneos. São Paulo: Editora Vida, 2005, 663 pgs.

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