quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Reinventando a dimensão educacional do culto


Se a educação cristã não se restringe nem à Escola Dominical, nem às aulas tradicionais, se a educação cristã é a formação do povo de Deus para a vida e a missão, se a educação cristã é ferramenta do Espírito para a renovação da igreja, podemos nos indagar em termos mais práticos e estruturais: que alternativas concretas se apresentam para a nossa prática educacional global, enquanto igrejas cristãs, no início deste novo século e milênio?

Reinventando a dimensão educacional do culto

Enquanto a ênfase na educação cristã regredia, crescia exponencialmente a valorização do culto e da música na igreja local. Na década de 1990, e nesses primeiros anos do século XXI, presenciamos grandes avanços na música e na liturgia das igrejas evangélicas, também acompanhados de limites e graves problemas.

Refletindo de forma esquemática sobre os pontos positivos dessas mudanças, talvez possamos destacar: o corpo dos cristãos passou a fazer parte viva dos cultos - palmas, movimento, dança, coreografia se tornaram comuns em muitas igrejas, ritmos, melodias, letras brasileiras foram incorporados aos cultos, o ministério de adoração passou a ser enfatizado, e muitos jovens se envolveram com a música e o louvor na igreja; emoções que anteriormente tinham pouco lugar no culto passaram a ocupar lugar central – alegria, exaltação, autoafirmação.

Sem desmerecer nenhum desses avanços, é preciso, porém, enumerar alguns aspectos negativos adotados na prática litúrgica “típica” em igrejas evangélicas: 1) a lógica litúrgica se tornou demasiado simples (ou, por que não dizer simplista?), reduzindo-se os cultos a músicas em sequência e sermão; 2) há uma ênfase demasiada sobre o desempenho musical, em detrimento da maturidade espiritual e emocional dos grupos de louvor; 3) a escolha de canções para o culto depende, em demasia, de critérios mercadológicos e midiáticos – o CD que “vende mais”, a canção que mais toca nas rádios, a cantora ou cantor “mais famoso”; 4) o baixo nível de formação e reflexão teológica da maior parte dos novos “levitas” e dirigentes de louvor, acompanhado de relações conflitivas com pastores e pastoras.

Em um livro sobre educação cristã, você pode se perguntar, por que tais considerações sobre culto e liturgia? Porque o culto é uma das estruturas mais importantes da educação cristã na igreja local? Não! Não se preocupe, não vou propor que os cultos voltem a ser “chatos”, “antiquados”, seguindo as regras da liturgia européia. O culto é, primariamente, encontro de adoração a Deus, de celebração de seus atos em nosso favor e em favor do mundo por ele criado, encontro de gratidão, testemunho e preparação para voltar a viver, no tempo secular, a fé e a missão. E é exatamente como culto que ele desepenha papel fundamental na formação cristã integral. Não precisamos transformar o culto em “aula” para que ele seja educador. Entretanto, precisamos trabalhar para que se torne presente a função educacional do culto, para que seu caráter pedagógico seja valorizado. Senão, como haver uma educação transformadora na igreja?

Algo que tem sido bastante esquecido é que existe uma lógica litúrgica que dá sentido ao culto. Essa lógica deve ser fundamental para a sua estrutura. Ou seja: ao preparar o culto, dê asas à criatividade, mas asas que nos levem ao encontro do Senhor, e não às nuvens vazias. A lógica litúrgica se compõe de: entrada na presença de Deus (separando o tempo “secular” do tempo “sagrado”), exaltação de Deus (que se dispõe a nos receber em sua presença), confissão de pecado (pois não se pode entrar na presença de Deus sem o reconhecimento de nossa pecaminosidade), gratidão a Deus pelo seu perdão e sua ação em nosso benefício (que pode incluir testemunho e até mesmo batismo), reconhecimento da comunidade e da comunhão cristãs (com ou sem a eucaristia), exposição da palavra de Deus (através de sermão, ou não), compromisso com o Deus da palavra, envio da igreja à missão no mundo. Essa lógica é, em si, educadora. Quando o culto se reduz apenas a uma sequência de cânticos e um sermão, ensina muito pouco – e ensina mal: que a vida cristã é apenas felicidade, busca de bênçãos e comunhão entre irmãos. Já a lógica litúrgica ensina que a vida cristã nasce, cresce e se concretiza em nossa submissão a Deus, em nossa vida entregue ao seu Filho, em nossa dependência do Espírito. A forma do culto pode e deve variar, com criatividade, mas precisa sempre ser fiel à lógica litúrgica! Quando a abandonamos, o culto passa a impressão de “liberdade no Espírito” mas, na prática, não passa de um tradicionalismo repetitivo – pura celebração da mesmice.

Aliada à lógica litúrgica praticada de forma contextual e criativa, o culto precisa de conteúdo bíblico e teológico de qualidade. Hoje, a “teologia” do povo de Deus é, primariamente, a teologia cantada e não a ouvida e lida. Escolher cuidadosamente as músicas, não em função de ritmo, mas em função da mensagem bíblica e teológica que transmitem, é fundamental. Nesse sentido, precisamos de uma revolução prática nas igrejas. Dirigentes de louvor, musicistas, “levitas”, seja como for que chamemos as pessoas que participam na elaboração e direção dos cultos, precisam conhecer profundamente a Escritura e a teologia cristã – tanto quanto os pastores e as pastoras! Entregar a escolha das músicas a serem cantadas no culto a quem não conhece (ou conhece pouco, ou, pior, conhece mal) a Bíblia e teologia provoca deseducação do povo de Deus. Alguns critérios simples: as letras precisam falar muito mais de Deus do que de “eu”, de “mim”, de “meu”... As letras precisam valorizar os alvos da vida eclesial: discernimento, missão, humanização, cidadania etc. As letras não podem ser antropocêntricas nem cardiocêntricas (só voltadas para as emoções). Que desafio! Há muito trabalho a ser feito nessa área.

Outro aspecto indispensável é que o lamento faça parte de nossos cultos. O lamento, no sentido bíblico, é composto de súplica, confissão e intercessão. Lamentar a Deus significa que reconhecemos nossa pecaminosidade, compreendemos que ele responde à oração, percebemos nosso compromisso missionário e oramos pelo mundo amado por Deus – e não só por nós mesmos. O lamento é o momento litúrgico do clamor: clamar a Deus por perdão e crescimento espiritual, clamar a Deus por crescimento e desenvolvimento da igreja, clamar a Deus pelo mundo sem Cristo. No lamento, especialmente na intercessão, nós nos identificamos solidária e compassivamente com a humanidade pecadora e reconhecemos que nossa salvação nos coloca na condição de missionários e embaixadores de Jesus Cristo no mundo. Releia e reflita cuidadosamente sobre Colossenses 3.14-17 e o papel educacional do culto.

Para finalizar, um destaque: o culto deve sempre orientar o povo de Deus para a ação missionária no mundo. O culto não pode ser egocêntrico, egoísta, voltado para dentro de nós mesmos. Se for assim, será doentio – acúmulo de bênçãos provoca doenças espirituais terríveis. A bênção de Deus deve ser repartida, ou se transformará em maldição.

(Trecho extraído de  ZABATIERO, Júlio. Novos caminhos para a educação cristã. São Paulo : Hagnos, 2009)

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