sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Entendes tu o que lês?


"[...] E, correndo Filipe, ouviu que lia o profeta Isaías, e disse: Entendes tu o que lês? E ele disse: Como poderei entender, se alguém não me ensinar? E rogou a Filipe que subisse e com ele se assentasse. E o lugar da Escritura que lia era este: Foi levado como a ovelha para o matadouro; e, como está mudo o cordeiro diante do que o tosquia, Assim não abriu a sua boca. Na sua humilhação foi tirado o seu julgamento; E quem contará a sua geração? Porque a sua vida é tirada da terra. E, respondendo o eunuco a Filipe, disse: Rogo-te, de quem diz isto o profeta? De si mesmo, ou de algum outro? Então Filipe, abrindo a sua boca, e começando nesta Escritura, lhe anunciou a Jesus" (Atos 8:30-35)



Filipe faz uma pergunta justa: Entendes tu o que lês? (v.30). Não para repreender, mas com a intenção de lhe servir. Note que o que lemos e ouvimos da palavra de Deus é para que a entendamos, sobretudo o que lemos e ouvimos em relação a Jesus. Devemos nos perguntar se entendemos ou não o que lemos: Entendestes todas estas coisas? (Mt 13.51). Entendestes todas estas coisas corretamente? Não podemos nos beneficiar com as Escrituras a menos que as entendamos em certa medida (1 Co 14.16,17). E, abençoadas por Deus, o que é necessário para a salvação é fácil de ser entendido.

O eunuco, sentindo necessidade de ajuda, deseja a companhia de Filipe: “Como poderei entender, diz ele, se alguém não me ensinar? (v.31). Sobe e senta-te comigo”.

(1) O eunuco fala como alguém que tivesse opinião desfavorável sobre si mesmo e duvidasse da própria capacidade e conhecimento. Ele estava muito longe de considerar afronta alguém lhe perguntar se ele entendia o que lia, embora Filipe fosse um estranho, estivesse a pé e, provavelmente, parecesse pobre e humilde (por muito menos outra pessoa teria dito que ele era impertinente, que cuidasse de sua própria vida e que ele não era ninguém para dizer isso). Ele trata a pergunta com amabilidade e dá uma resposta bastante humilde: “Como poderei...?” Temos motivo para pensar que ele era inteligente e bastante familiarizado com o significado das Escrituras, como a maioria, mas mesmo assim confessa humildemente sua deficiência. Note que para aprender tem de haver alguém que ensine. O profeta tem de, primeiramente, reconhecer que não sabe o que é isto para que, então, o anjo lhe diga (Zc 4.13).

(2) O eunuco fala como alguém que possui muito desejo de aprender, de ter alguém que o oriente. Note que ele lia as Escrituras, embora houvesse muitas coisas nela que ele não entendesse. Mesmo que haja na Bíblia muitos pontos difíceis de entender (2 Pe 3.16) e muitos outros sejam interpretados erroneamente, não devemos desistir. Temos de estudar os pontos difíceis por causa dos pontos fáceis, pois este é o modo mais provável de, pouco a pouco, virmos a entender os pontos difíceis: o conhecimento e a graça aumentam gradualmente.

(3) O eunuco convidou Filipe para que subisse e com ele se assentasse (v.31). Não como Jeú, que convidou Jonadabe para acompanhá-lo no carro e ver o zelo que ele tinha para com o Senhor (2 Re 10.16), mas: “Vem ver a minha ignorância, e instrui-me”. Ele alegremente honrará Filipe, levando-o no carro, se Filipe lhe fizer o favor de lhe expor um trecho das Escrituras. Note que para entendermos corretamente as Escrituras precisamos de orientação: alguns livros bons e alguns homens bons, mas, acima de tudo, o Espírito da graça, para nos guiar a toda a verdade.

O trecho das Escrituras que o eunuco recitou e algumas indicações de Filipe a esse respeito

Os pregadores do Evangelho tinham um pretexto muito bom para prender os que estavam familiarizados com as Escrituras do Antigo Testamento e as recebiam, sobretudo, quando se achavam empenhados em estudá-las, como este eunuco.

O capítulo que o eunuco estava lendo era Isaías 53. Aqui são citados dois versos: partes dos versículos 7 e 8. Eles (vv. 32,33) estão registrados de acordo com a versão da Septuaginta, a qual em certos pontos difere do original hebraico. Grotius opina que o eunuco leu o texto em hebraico, mas Lucas segue a tradução da Septuaginta, por estar mais fluente à língua na qual ele escrevia. Ele supõe que o eunuco aprendera a religião e a língua hebraica dos muitos judeus que moravam na Etiópia. Mas, considerando que a versão da Septuaginta foi elaborada no Egito, país adjacente à Etiópia, e que se situava entre este e Jerusalém, prefiro pensar que a tradução lhe era muito conhecida. O texto de Isaías 20.4 dá a entender que as relações entre essas duas nações - Egito e Etiópia – eram bastantes extensas. A maior variação do hebraico é a que está no original: “Ele foi tirado da prisão e do julgamento” ([Is 53.8, LXX] quer dizer, ele foi levado com extrema violência e precipitação de um tribunal a outro; ou: Da opressão e do juízo foi tirado [Is 53.8, versão RC], quer dizer, ele foi tirado da fúria do povo e seus clamores ininterruptos, e do julgamento de Pilatos após), aqui está escrito: Na sua humilhação, foi tirado o seu julgamento (v.33). Ele parecia tão vil e desprezível aos olhos das pessoas que elas lhe negaram a justiça comum. Indo contra todas as regras da imparcialidade, cujo benefício todo indivíduo tem direito, mesmo tendo-o declarado inocente, os homens o condenaram à morte. Assim, na sua humilhação, foi tirado o seu julgamento. Vemos, então, que o sentido é muito semelhante ao do hebraico. Portanto, este versículos são predições relativas ao Messias.

(1) O Messias morreria, seria levado [..] para o matadouro (v.32), como as ovelhas eram oferecidas em sacrifício – que sua vida seria tirada dentre os homens, tirada da terra. Com que pequena razão foi a morte de Cristo uma pedra de tropeço para os judeus incrédulos, visto que foi predita de forma tão clara pelos seus próprios profetas e era tão necessária para a realização do seu empreendimento! Logo, o escândalo da cruz está aniquilado (Gl 5.11).

(2) O Messias morreria injustamente, morreria por violência, seria arrancado de sua vida, pois o seu julgamento seria tirado (v.33). Não lhe seria feito justiça, porque Ele deveria ser tirado e não seria mais (Dn 9.26).

(3) O Messias morreria pacientemente. Como está mudo o cordeiro diante do que o tosquia (v.32), não somente diante do tosquiador, mas diante do açougueiro também, assim não abriu a sua boca. Nunca haverá tal exemplo de paciência como o nosso Senhor teve em seus sofrimentos. Quando Ele foi acusado, quando foi maltratado, ficou calado, quando o injuriavam e, quando padecia, não ameaçava (1 Pe 2.23).

(4) O Messias, apesar disso, viveria para sempre, por séculos que não poderiam ser numerados. É como entendo essas palavras: Quem contará a sua geração? (v.33). A palavra hebraica significa, corretamente, “a duração de uma vida” (Ec 1.4). Não obstante, quem pode conceber ou expressar quanto tempo Ele permanecerá? Porque a sua vida é tirada somente da terra. No céu, Ele viverá pelos séculos infinitos e inumeráveis, como consta em Is 53.10: Ele prolongará os seus dias.

A pergunta do eunuco sobre estas Escrituras é: De quem diz isto o profeta? (v.4). Ele não deseja que Filipe lhe faça alguns comentários criteriosos sobre as palavras, frases e expressões idiomáticas da língua, mas que o inteire da extensão e desígnio geral da profecia, que lhe dê uma chave, no uso da qual ele possa, comparando uma coisa com a outra, ser conduzido ao significado da passagem em particular. No geral, as profecias tinham em si algo de ambiguidade, até serem explicadas pelo seu cumprimento, como ocorre com esta. Tratava-se de uma pergunta muito importante e muito sensata: “O profeta […] diz […] de si mesmo ou de algum outro, na perspectiva de ser usado, de ser maltratado, como foram os outros profetas? Ou ele fala de algum outro de sua própria época, ou de alguma época vindoura?”.Embora os judeus modernos não admitam que isto se refira ao Messias, os seus antigos doutores assim o interpretavam. Talvez o eunuco soubesse disso e em parte entendesse o texto assim, servindo-se desta pergunta apenas para ocasionar a conversa com Filipe, pois o modo de melhorar o aprendizado é consultar os instruídos. Como eles têm de buscar a lei da boca do sacerdote (Ml 2.7), assim eles têm de investigar o evangelho da boca dos ministros de Jesus (Filipe, abrindo a boca, v.35), sobretudo aquela parte do tesouro que está escondido no campo do Antigo Testamento. O modo de receber boas instruções é fazer boas perguntas.

Filipe aproveita esta excelente oportunidade para abrir ao eunuco o grande mistério do evangelho relativo a Jesus Cristo e este crucificado (1 Co 2.2). Ele começou nesta Escritura (v.35), tomando-a por seu texto (como fez Jesus em outra passagem da mesma profecia, Lc 4.21), e lhe anunciou a Jesus. Esta é a narrativa total que temos do sermão de Filipe, porque na verdade era igual aos sermões de Pedro que já temos. O trabalho dos ministros do evangelho é anunciar a Jesus, e esta é a pregação mais provável de ser bem sucedida. É provável que agora Filipe tivesse oportunidade de usar o seu dom de línguas para pregar Jesus a este etíope no idioma de seu próprio país. Aqui temos um exemplo de falar das coisas de Deus, falando delas utilmente, não apenas quando nos assentamos em casa, m as também quando andamos pelo caminho, de acordo com a regra deuteronômica (Dt 6.7).

(extraído de HENRY, Mattew. Comentário Bíblico Novo Testamento – Atos a Apocalipse. Rio de Janeiro: CPAD, 2008, 1ªed.)

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