terça-feira, 8 de abril de 2014

Disciplina na vida cristã: um conceito a ser resgatado




[por Alderi Souza de Matos]

A mentalidade hedonista e utilitária do tempo presente não vê com bons olhos a ideia de disciplina. No entanto, trata-se de uma atitude e uma prática fundamental para a vida cristã. Na Bíblia, encontramos dois tipos de disciplina – a de outrem e a de si mesmo. Na primeira acepção, trata-se das medidas impostas pelos pais aos filhos ou pela igreja aos seus fiéis no sentido de corrigir comportamentos impróprios. No segundo sentido, o que se tem em mente é a autodisciplina, o autocontrole, como parte de uma vida cristã séria e comprometida.

Em grego, o termo relacionado com esse segundo aspecto da disciplina é o verbo “askeo”, no infinitivo “askein”, que significa “exercitar-se”, “esforçar-se”. As palavras cognatas são os substantivos “asketes” (aquele que se exercita, atleta) e “askesis” (exercício, esforço). Essa é a origem dos termos ascese, asceta e ascetismo, que têm a sua própria história. Curiosamente, dos vocábulos gregos acima, só o verbo aparece no Novo Testamento, e mesmo assim uma única vez, em Atos 24.16, onde o apóstolo Paulo diz: “Por isso, também me esforço por ter sempre consciência pura diante de Deus e dos homens”. 

Todavia, se o termo é raro, a ideia correspondente é comum nas páginas bíblicas. Uma passagem clássica é aquela em que Paulo descreve sua vida cristã utilizando diversas palavras da vida esportiva do mundo greco-romano: “Todo atleta em tudo se domina, aqueles, para alcançar uma coroa corruptível; nós, porém, a incorruptível. Assim corro também eu, não sem meta; assim luto, não como desferindo golpes no ar. Mas esmurro o meu corpo e o reduzo à escravidão, para que, tendo pregado a outros, não venha eu mesmo a ser desqualificado” (1Co 9.25-27). Em uma passagem paralela, ele recomenda a Timóteo que se exercite pessoalmente na piedade (1Tm 4.7b). Os verbos utilizados são outros (“agonizomai”, “gymnazo”), mas o conceito é o mesmo. O cristão deve ser um atleta de Cristo. A vida cristã exige esforço, autodisciplina.

No terceiro século, surgiu uma prática que não fazia parte do cristianismo original, a ascese ou ascetismo, no sentido de uma autodisciplina rigorosa. Essa conduta foi entendida principalmente em termos de abstinência de prazeres físicos, em especial a sexualidade (castidade) e a posse de bens (pobreza). Se é verdade que Jesus viveu dessa maneira, em nenhum lugar ele estabeleceu uma lei nesse sentido para os seus seguidores. O Novo Testamento vê com naturalidade o casamento dos ministros de Deus (Mt 8.14; 1Co 9.5). Paulo questiona que o tratamento severo do corpo seja benéfico para a vida espiritual (Cl 2.23). Além disso, quando o Novo Testamento prescreve elevados padrões de conduta moral, fica claro que isso é para todos os cristãos, e não para um grupo seleto (Rm 8.13; 13.13s; 1Ts 4.3-7).

De qualquer modo, as palavras de Jesus ao jovem rico impressionaram fortemente as primeiras gerações de cristãos: “Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens, dá aos pobres e terás um tesouro no céu; depois, vem e segue-me” (Mt 19.21). A expressão inicial, que aparece somente em Mateus, passou a ser interpretada no sentido de que havia dois tipos de cristãos – os que se contentavam com uma vida medíocre e os que aspiravam à perfeição. Desse entendimento resultou o monasticismo, a chamada vida consagrada. Essa instituição deu grande valor à autodisciplina: todo monge fazia o tríplice voto de pobreza, castidade e obediência e se submetia a uma regra de conduta. A vida monástica era rigorosamente estruturada em torno de três atividades: devoção, trabalho e estudo. Havia sete períodos fixos de oração individual e coletiva: matinas, prima (laudes), terça, sexta, noa, vésperas e completas.

A Reforma Protestante, ao relativizar a distinção entre clero e laicato, ao questionar a validade do celibato e ao valorizar a vida normal em família, descartou por completo o monasticismo e a ascese associada ao mesmo. No entanto, como afirma o ditado, jogou fora o bebê junto com a água do banho, pois perdeu esse valioso elemento de uma vida regrada e disciplinada. O temor da rigidez e a busca de total espontaneidade fizeram com que muitos protestantes se tornassem relapsos na sua vida devocional. É verdade que houve movimentos que valorizaram a disciplina espiritual, tais como os pietistas, os morávios e, em especial, os puritanos. Mas hoje, a maior parte dos evangélicos, seja individualmente, seja em família, não cultiva hábitos regulares de oração, meditação e estudo bíblico.

Vivendo numa era de enorme ativismo e dispersão de interesses, os crentes precisam voltar a aprender o valor e o prazer da genuína espiritualidade bíblica. Um autor que fez valiosa reflexão sobre o tema é o quacre Richard J. Foster, cujo livro “Celebração da Disciplina” foi publicado pela primeira vez em português há exatos trinta anos (1983). Nesse clássico, ele aborda doze disciplinas espirituais, divididas em três categorias: interiores (meditação, oração, jejum, estudo), exteriores (simplicidade, solitude, submissão, serviço) e associadas (confissão, adoração, orientação, celebração). Mesmo que não concordemos com todas as ideias de Foster, seu chamado a uma vida de maior profundidade devocional é deveras salutar.

A Escritura e a história demonstram que os homens e mulheres cristãos que maiores contribuições deram à igreja, ao reino de Deus e ao mundo foram pessoas de vida disciplinada, que souberam colocar em primeiro lugar aquilo que é mais importante. Se a igreja contemporânea quiser recuperar a vitalidade de outros tempos, precisa ensinar aos seus fiéis a importância de organização, intencionalidade e alvos concretos não somente nos estudos ou na vida profissional, mas no cultivo da vida interior, na comunhão com Deus e no serviço ao próximo. Como ensina o apóstolo dos gentios (Fp 2.12), todo cristão deve “desenvolver a sua salvação”, e fazer isso com temor e tremor.

publicado na Revista Ultimato, ed. 345, nov-dez 2013.

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