"Comecemos com a leitura feita por Søren
Kierkegaard de Tiago 1.22-27. Aquele que ouve a Palavra de Deus e a
segue é como uma pessoa que se olha no espelho e passa a se lembrar
do que vê dali em diante. Que tipo de olhar sobre si mesmo no
espelho da Palavra de Deus, pergunta ele, é necessário a fim de que
se receba uma benção verdadeira? Ele responde que só se beneficia
do olhar em direção à Palavra aquele que vai além de observar o
espelho para ver a si próprio. Assim, a parábola de Tiago “alerta
contra o erro de se passar a examinar o espelho, em vez de olhar-se
no espelho”.
“Ver a si mesmo no espelho”. A leitura de
Kierkegaard dessa imagem bíblica imediatamente nos apresenta um
problema de e para a interpretação. O que Kierkegaard quer dizer
com “ver a si mesmo”? Estaria ele sugerindo que não há nada no
texto, de forma que o leitor descobre apenas a si mesmo nele, ou que
só se pode realmente ver a si próprio quando se consegue captar o
significado bíblico, digamos, do pecado e da salvação? Em outras
palavras, os leitores projetam a si próprios sobre o texto ou
descobrem a si próprios no texto? Essa “imagem do espelho”
suscita aquilo que acredito seja a pergunta mais importante para as
teorias contemporâneas de interpretação, quer da Bíblia quer de
qualquer outro livro: existe alguma coisa no texto que reflita uma
realidade independentemente da atividade interpretativa do leitor, ou
o texto apenas reflete a realidade do leitor?
A segunda parábola de Kierkegaard, “a carta do
amante”, é sobre um homem que recebe de sua amada uma carta
escrita em língua estrangeira. Desesperado para ler a carta, ele
pega um dicionário e começa a traduzir uma palavra por vez. Um
conhecido entra, interrompe sua tradução, e diz: “Ah, você está
lendo uma carta de sua amada”. O amante responde: “Não, meu
amigo, estou aqui me esfalfando com um dicionário. Se você chama
isso de leitura, está zombando de mim”. A posição de
Kierkegaard é a de que a erudição linguística e histórica não é
uma leitura verdadeira. É como examinar e explorar o próprio
espelho – como olhar para o espelho, em vez de olhar no
espelho. Esse, sugere ele, é o perigo da moderna crítica bíblica.
Na parábola do “decreto real”, Kierkegaard nos pede
que imaginemos um país no qual é promulgada uma ordem real. No
entanto, em vez de obedecer à ordem, os súditos do rei começam a
interpretar. A cada dia, surgem novas interpretações da
ordem. Em pouco tempo, a população mal consegue acompanhar a enorme
quantidade de interpretações: “Tudo é interpretação – mas
ninguém lê a ordem real de forma a poder obedecê-la”.
Ora, a Palavra de Deus é, ao mesmo tempo, carta de
amor e decreto real. Nós olhamos para ela ou nela? Nós a seguimos
ou a “interpretamos”? Nós nos vemos ou nos projetamos nela?
Essas parábolas deveriam estimular os leitores a examinarem a si
próprios a fim de verem e estão “na fé” quando buscam o
entendimento. Acredito que aquilo que era verdadeiro no tempo de
Kierkegaard é ainda mais verdadeiro no nosso tempo. Precisamos
examinar a teoria e a prática da interpretação contemporânea para
ver se elas se encontram “na fé”, pois alguns leitores tramam
privar a Bíblia de sua autoridade por meio da interpretação.
Kierkegaard lamenta: “Minha casa será casa de oração; mas vocês
fizeram dela um covil de ladrões. E a Palavra de Deus – qual é,
segundo seu propósito, e em que nós a transformamos?”.
A moral das parábolas de Kierkegaard é a de que os
leitores deixaram de ter o privilégio e a responsabilidade de
interpretar com seriedade. O propósito da interpretação não é
mais recuperar e relacionar-se com uma mensagem vinda de alguém
diferente de nós, mas precisamente evitar tal confronto. O
empreendimento da interpretação é um impedimento: constantemente
produzir leituras para impedir que se responda ao texto. Qual o
objetivo de cada interpretação? A resposta de Kierkegaard é
cínica, porém perspicaz: “Olhem mais de perto, e vocês verão
que essa é uma forma de defesa contra a Palavra de Deus”. A fim de
evitar verem-se a si mesmos nas Escrituras como realmente são,
alguns leitores preferem ou olhar para o espelho, ou projetar suas
próprias, e mais lisonjeiras, imagens."
Fonte: VANHOOZER, Kevin J. Há um significado neste texto? Interpretação bíblica: os enfoques contemporâneos. São Paulo: Editora Vida, 2005, 663 pgs.
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