[por Guilherme
de Carvalho]
“- Qual é o seu único conforto, na vida e na morte?”
“- O meu único conforto é meu fiel Salvador Jesus Cristo.”
Com
estas palavras abre-se o Catecismo de Heidelberg, que em janeiro
completou 450 anos e é reconhecidamente um dos mais importantes
símbolos confessionais do protestantismo. Não apenas seu caráter
Cristocêntrico, como também seu profundo sentido espiritual
revelam-se ao longo de todo o primeiro artigo:
“- A Ele pertenço, em corpo e alma, na vida e na morte, e não pertenço a mim mesmo. Com seu precioso sangue Ele pagou por todos os meus pecados e me libertou de todo o domínio do diabo. Agora Ele me protege de tal maneira que, sem a vontade do meu Pai do céu, não perderei nem um fio de cabelo. Além disto, tudo coopera para o meu bem. Por isso, pelo Espírito Santo, Ele também me garante a vida eterna e me torna disposto a viver para Ele, daqui em diante, de todo o coração.”
Captura
a minha atenção, nesse primeiro artigo do catecismo, a conexão
imediata entre a doutrina e a existência. O texto não fala de algo
abstrato, puramente teológico, mas de algo dramático, duma questão
de vida e morte. O que pode ser tão amplo que abarque a vida e
também a morte? E não apenas amplo mas também urgente, já que a
vida está o tempo inteiro à beira da morte?
A
questão que é de “vida e morte” é a questão do meu consolo
último, do esteio da minha existência, e aqui as coisas se tornam
não apenas momentosas, urgentes e solenes, mas profundamente
afetivas e íntimas. “O
meu conforto na vida e na morte”
é coisa sobre a qual não posso me pronunciar sem respirar fundo e
até fechar os olhos. Pois não se trata apenas de uma confissão
sobre o que se concorda ou sobre correção doutrinária, mas sobre a
minha posição agora, nesse instante, sobre como eu me sinto a
respeito de mim e do meu destino – por isso, aparentemente, uma
tradução Brasileira do catecismo traz a palavra “fundamento” no
lugar de “conforto” ou “consolo” [...]. Trata-se de algo
sobre “o
que é o meu chão”,
parafraseando a tradução Brasileira. Qual é o fundamento da minha
existência? O que dá sentido para minha vida, e orientação, e
segurança?
Todo
o primeiro artigo do catecismo gira em torno da segurança:
“a
ele pertenço… e não pertenço a mim mesmo… Agora ele me
protege… tudo coopera para o meu bem… Ele também me garante a
vida eterna e me torna disposto a viver para Ele…”
A
Reforma compreendeu muito bem que a realidade da salvação é
expressa em uma reorganização da existência em torno de Cristo, e
que uma das primeiras expressões disso é a segurança Cristã –
talvez não a primeira em termos temporais, mas certamente em
importância real. Essa segurança precisa ser exposta, trazida à
frente e alimentada até tornar-se uma autodefinição: “Eu
sou isso:
eu sou alguém
que está nas mãos de Jesus Cristo,
alguém que viverá e morrerá Nele”.
Ela é natural para o cristão, mas não é automática: precisa
receber chuva e sol, sobreviver a ventos e pragas, lançar raízes e
engrossar; e um dos modos de alimentar essa planta é a confissão
da fé,
quando dizemos para Deus, para o mundo, e para nós o que cremos e o
que somos.
Para
mim é impossível não pensar, aqui, nas palavras do apóstolo Paulo
em Romanos, naquele capítulo crucial e climático da Escritura:
“Aquele
que não poupou o seu próprio Filho, antes, por todos nós não dará
graciosamente com ele todas as cousas?”
(Rm 8.32). Essa é a lógica do cristianismo: é a hermenêutica
fiel. Não
hermenêutica da Bíblia apenas, e nem mesmo uma hermenêutica
filosófica, mas algo muito mais visceral e que condicionará tanto a
nossa leitura Bíblica quanto a nossa interpretação filosófica:
aquele “sentimento da existência” cheio de gratidão e
segurança, e que não pode senão inferir do evangelho que todas as
coisas cooperam para o meu bem (Rm 8.28), e que celebra isso
secretamente com um sorriso suave diante da vida e diante da morte,
um sorriso que não é destruído nem quando se chora de tristeza.
“Aquele que não poupou o seu próprio Filho, antes, por todos nós não dará graciosamente com ele todas as cousas?”
“O
Espírito testifica com o nosso espírito que somos Filhos de Deus”
(Rm 8.14). Certíssimos estavam os puritanos e, exatamente nesse
ponto, o Dr. Martin Lloyd Jones, que me introduziu a eles: a certeza
da salvação é mesmo muito importante, e não deve ser trivializada
nem dificultada. Trata-se de uma pedra muito preciosa que já está
lá no coração do regenerado, talvez ainda em estado bruto
aguardando lapidação; mas a seu tempo ela será visível, em seu
devido lugar: a jóia esplêndida que só pode ser encontrada no dedo
dos eleitos.
O
que o catecismo quer comunicar não é apenas uma doutrina, mas o
'pathos'
apropriado
a ela, e faríamos muito bem em apreendê-lo. Eu apenas acrescentaria
que será extremamente útil lançar luz sobre a presença e o
caráter dos ídolos contemporâneos, aos quais nos agarramos para
constituir nossa identidade e ganhar segurança. Pois com facilidade
essa confissão sobre Jesus ser o único conforto é pronunciada
hipocritamente ou, no mais das vezes, desatentamente, enquanto ainda
buscamos conforto em outras fontes, que podem ser o sucesso
vocacional, o marido e a esposa, um bom videogame ou uma ideologia
política (ídolo corriqueiro entre evangélicos à esquerda e à
direita do mundo).
Francis
Schaeffer usava uma interessante metáfora para descrever o modo como
preparava as pessoas para o evangelho: “arrancar o telhado”.
As pessoas costumam viver inconscientes da contradição
irreconciliável entre sua descrença em Deus (descrença que sempre
pressupõe crenças alternativas) e sua condição humana. Expor e
denunciar essa tensão, mostrar que é impossível ser humano sem
Deus, seria “arrancar o telhado” pelo bem da pessoa.
Arrancar
o chão da falsa segurança é frequentemente mais difícil que
arrancar o telhado da ideologia. Não dá pra fazer somente com
palavras e diálogo; primeiro a casa inteira tem que cair. É sempre
Deus mesmo quem tira o chão de alguém, quando quebra seus ídolos e
expõe com toda a crueza a sua vaidade. Deus é quem promove em nós
uma santa insegurança, até às raias do desespero, para que
encontremos nele a segurança genuína, a consolação que transborda
por meio de Cristo (2Co 1.8-9). Mas se pudemos dialogar com as
pessoas e interpretar esse juízo, depois, durante ou mesmo antes da
quebra dos ídolos, estaremos talvez “preparando o caminho do
Senhor”. Não podemos produzir a fé correta, mas é nosso
dever despertar a dúvida sobre a fé idólatra. E nada como uma boa
dúvida para dissolver devoções ilusórias e nos relançar na rota
da segurança autêntica!
Roçar a terra do coração, para deixar a Esperança nascer…
Qual
é o chão sobre o qual pisamos? É mesmo o chão da confissão de
fé, a única fonte possível de conforto? O que é pra nós a fonte
de significado e segurança, aquilo que sustenta nosso senso de
estabilidade, que é o ponto de partida para nossas incursões no
mundo do trabalho e na cultura, e o lugar de retorno sobre o qual
construímos nossas expectativas e planejamos o futuro?
Jesus
é o único consolo porque é o Novo Homem; porque nele o Pai fez
“novas
todas as coisas”.
Ele é o primogênito e a raiz da Nova Criação. Nele todas as
coisas são reconciliadas com Deus; nele temos a Deus e a nós mesmos
de forma perfeita. Ele é, objetivamente,
o único fundamento e o único conforto. Mas é preciso que ele seja
o
meu e o seu conforto; e
não apenas o nosso consolo para ganhar o céu, mas também
o
consolo para vivermos e morrermos; um fundamento para sermos humanos
no mundo. Se
desejamos que a segurança Cristã transpareça em nosso viver
ordinário, é preciso que cada aspecto desse viver ordinário seja
fundamentado e enraizado no extraordinário, que é Cristo. E onde
Cristo não for o chão da casa tudo será incerto, inseguro,
dominado pelo pavor da finitude e do vazio. Porque
não há outro chão.
Sem esse chão só há a areia fina da finitude. Pense nisso, medite
nisso: a vaidade e a fragilidade de tudo o que somos e fazemos, à
parte de Jesus Cristo. Não, isso não é cultivar o desânimo; é
roçar a terra do coração para deixar a Esperança nascer.
Lembremo-nos
do catecismo de Heidelberg, e do apóstolo Paulo, que inspirou o
catecismo: não há outro conforto senão aquele que vem do Deus de
toda a consolação (2Co 1.3-10). Não há outro, não apenas para a
“vida
religiosa”,
para a “salvação
eterna”,
para o púlpito e para organizar a vida na comunidade eclesiástica;
não há outro razão para sermos
humanos, mesmo em face da morte. Você
estará perfeitamente firme e seguro, se desistir de construir sobre
a areia e plantar sua casa em uma rocha; se permitir que Deus desfaça
todas as suas seguranças no fogo do desespero, para que sua
segurança esteja apenas naquele que ressuscita os mortos.
Fonte:
blog Mero Cristianismo
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