[Por
João
Calvino]
“Não
penseis que vim destruir a lei ou os profetas; não vim destruir, mas
cumprir. Porque em verdade vos digo que, até que o céu e a terra
passem, de modo nenhum passará da lei um só i ou um só til, até
que tudo seja cumprido. Qualquer, pois, que violar um destes
mandamentos, por menor que seja, e assim ensinar aos homens, será
chamado o menor no reino dos céus; aquele, porém, que os cumprir e
ensinar será chamado grande no reino dos céus”. (Mateus 5.17-19)
“Não
penseis”.
Em
relação à perfeição de Sua vida, Cristo poderia, com justiça,
ter dito que Ele veio cumprir
a Lei.
Mas aqui Ele trata de doutrina, não de vida. Quando Cristo proclamou
depois, “É
chegado a vós o reino de Deus” (Mt 12.28),
Ele levou as mentes dos homens a um estado de expectativa incomum e
até mesmo admitiu discípulos por meio do batismo. É provável que
isso tenha feito com que as mentes dos homens se encontrassem em um
estado de suspense e dúvida, ansiosos para saber que novidade era
aquela. Por este motivo, Cristo declarou que Sua doutrina está muito
longe de contrariar a Lei. Pelo contrário, ela concorda
perfeitamente com a
Lei
e os Profetas e
não somente isso, mas trás o pleno cumprimento destes.
Parece
que havia dois motivos principais que o levaram a anunciar essa
concordância entre a Lei e o Evangelho. Assim que qualquer novo
método de ensino aparece, o povo imediatamente pensa que tudo está
sendo subvertido. A pregação do Evangelho, como eu acabei de
mencionar, tendia a criar a expectativa de que a Igreja assumiria uma
forma completamente diferente da anterior. Pensaram que o governo
antigo e costumeiro seria abolido. Uma opinião assim era, em muitos
sentidos, perigosa. Adoradores
devotos jamais teriam abraçado o Evangelho caso fosse uma revolta
contra a Lei.
Ao mesmo tempo, espíritos levianos e turbulentos teriam ansiosamente
aproveitado a situação para lançar fora toda religião. Pois nós
conhecemos o quanto pessoas apressadas estão sempre prontas para se
envolver com escândalos insolentes quando há qualquer coisa nova.
Além
disso, Cristo viu que a maior parte dos judeus eram profanos e
degenerados, apesar de professarem obedecer a Lei. A condição do
povo estava tão decadente, tudo estava tão cheio de tantas
corrupções e a negligencia ou malícia dos sacerdotes havia
extinguido de tal forma a pura luz da doutrina, que não havia mais
reverência a Lei. Mas se uma nova doutrina houvesse sido
introduzido, que destruísse a autoridade da Lei e os Profetas, a
religião teria sofrido um dano terrível. Isso parece ter sido o
primeiro motivo pelo qual Cristo declarou que Ele não veio destruir
a Lei. De fato, o contexto deixa isso abundantemente claro. Pois Ele
imediatamente diz, como forma de confirmação, que é impossível
mesmo que nem um ponto sequer da Lei venha a falhar – e anuncia uma
maldição contra os mestres que não trabalham fielmente para manter
sua autoridade.
O
segundo motivo era pra refutar a calunia maligna que Ele sabia que
era levantada contra Ele pelos ignorantes e indoutos. Esta acusação,
evidentemente, havia sido feita contra sua doutrina pelos escribas.
Pois Ele imediatamente direciona seu discurso contra eles. Precisamos
ter em mente qual era o propósito de Cristo. Apesar d’Ele convidar
e exortar os judeus, Ele também os chama para a obediência a Lei.
Além disso, Ele corajosamente refutou as acusações e calunias
desprezíveis que seus inimigos usavam com o objetivo de levantar
suspeitas contra Sua pregação.
Se
quisermos reformar questões que se encontram em estado de desordem,
devemos sempre agir com a mesma prudência e moderação, de forma a
convencer o povo que não somos contrários à eterna Palavra de Deus
nem queremos introduzir alguma novidade contrária a Escritura.
Precisamos cuidar de que nenhuma suspeita de contradição cause dano
à fé dos piedosos e que homens apressados não se animem com a
ideia de novidade. Em resumo, devemos trabalhar para se opor ao
desprezo profano contra a Palavra de Deus e para prevenir que a
religião seja odiada pelos ignorantes. A defesa que Cristo fez, para
libertar Sua doutrina de calunias, deve nos encorajar, quando somos
alvos das mesmas calunias. A
mesma acusação foi levantada contra Paulo, que ele era um apostata
da Lei de Deus (At
21.21) e não devemos, portanto, ficarmos surpresos se os papistas
trabalham, da mesma maneira, para nos fazer odiáveis. Conforme o
exemplo de Cristo, devemos esclarecer falsas acusações e, ao mesmo
tempo, professar a verdade livremente, ainda que nos exponha a
acusações injustas.
“Eu
não vim abolir a Lei”.
Deus,
de fato, prometeu um novo pacto na vinda de Cristo; mas, ao mesmo
tempo, mostrou que não seria diferente do primeiro, mas que, ao
contrário, seu
objetivo era o de sancionar perpetuamente o pacto que ele havia feito
desde o principio com seu próprio povo.
“Porei
a minha Lei no seu interior… e nunca mais me lembrarei de seus
pecados”.
(Jeremias 31.33)
Por
estas palavras, Ele está tão longe de se apartar do pacto anterior
que, ao contrário, Ele declarou que seria confirmado e ratificado
quando fosse sucedido pelo novo. Este também é o sentido das
palavras de Cristo, quando Ele diz que Ele veio cumprir a Lei, pois
Ele, de fato, cumpriu ao vivificar por Seu Espírito a letra morta e
assim demonstrou a realidade daqui que aparecia somente por figuras.
Em
relação à doutrina, não devemos imaginar que a vinda de Cristo
nos livrou da autoridade da Lei. Pois a Lei é a regra de uma vida
devota e santa e, portanto, é tão imutável quanto a justiça de
Deus que ela revela, sendo constante e uniforme. Em relação às
cerimonias, há alguma aparência de mudança, mas foi somente o uso
das cerimonias que foi abolido, pois o significado foi ainda mais
confirmado. A vinda de Cristo não retirou nada mesmo das cerimonias,
mas, ao contrário, confirmou-as ainda mais ao exibir a verdade das
sombras, pois quando vemos seu efeito completo, reconhecemos que não
são vãs ou inúteis. Aprendamos, então, a manter esse união
sagrada entre a Lei e o Evangelho que muitos tentam quebrar
inapropriadamente. Pois contribui em muito para o Evangelho quando
aprendemos que não é outra coisa se não o cumprimento da Lei, de
forma que ambos, em concordância, declaram que Deus é seu Autor.
“Até
que o céu e a terra passem”.
Lucas
expressa isso de forma um pouco diferente, mas dizendo o mesmo, que
“É
mais fácil passar o céu e a terra do que cair um til da lei”.
(Lc 16.17). O
propósito de Cristo, nas duas passagens, era o de ensinar que a
verdade da Lei e de cada parte dela está segura, e que nada tão
duradouro pode ser encontrado no mundo inteiro. Alguns se prendem em
analises engenhosas da palavra “até”, como se o passar do céu e
da terra, que acontecerá no último dia, no dia do juízo, fosse pôr
um fim a Lei e os Profetas. Tão certo quanto “havendo
profecias, serão aniquiladas; havendo línguas cessarão”
(I Co 13.8), eu acredito que
Lei escrita e sua exposição chegarão
ao fim; mas como eu sou da opinião de que Cristo falou de maneira
mais simples, escolho não alimentar os ouvidos dos leitores com tais
complexidades. É suficiente que entendamos simplesmente que é
mais fácil o céu quebrar em pedaços e o mundo inteiro se tornar
uma massa de confusão do que a estabilidade da Lei chegar ao fim.
Mas o que significa que cada parte da Lei se cumprirá até o menor
ponto? Pois, verificamos que até mesmo os que foram regenerados pelo
Espírito de Deus estão muito longe de guardar a Lei de Deus
perfeitamente. Eu respondo que a expressão “não
passará”
não se refere a vida dos homens, mas a perfeita verdade e doutrina.
“Não
há nada na Lei que não seja importante, nada que foi posto lá
aleatoriamente; portanto, é impossível que uma letra sequer
pereça”.
“Qualquer,
pois, que violar”.
Aqui
Cristo fala expressamente do mandamento de vida, ou as dez palavras,
que todos os filhos de Deus devem considerar como sendo a regra de
suas vidas. Ele
declara que são mestres falsos e enganadores aqueles que não
ensinam seus discípulos a obediência a Lei e que são indignos de
ocupar um lugar na Igreja aqueles que de alguma maneira enfraquecem
a autoridade da Lei; e, por outro lado, que são os mais honestos e
fiéis ministros de Deus que, tanto em palavra quanto em exemplo,
ensinam a guardar a Lei.
O menor dos mandamentos é uma expressão usada em acomodação com
ao julgamento dos homens. Apesar dos mandamentos não terem o mesmo
peso (quando são comparados entre si, alguns tem menos e outros
mais), não somos livres para pensar que seja pequeno qualquer coisa
que aprouve ao Legislador mandar. Quão
grande é o sacrilégio tratar com desprezo qualquer coisa que
proceda de Sua boca sagrada!
Isso é rebaixar Sua importância ao nível das criaturas. Sendo
assim, quando Nosso Senhor os chama de mandamentos menores, é uma
forma de acomodação. “Ele
será chamado de menor”.
Isso é uma alusão ao que Ele acabara de dizer sobre os mandamentos
e o significado é óbvio. Aqueles
que desprezam a doutrina da Lei, qualquer sílaba que seja, será
rejeitado como o menor dos homens.
O
Reino de Deus significa a renovação da Igreja, ou a condição
próspera da Igreja, como a que começou a aparecer pela pregação
do Evangelho. É neste sentido que Cristo nos diz que “o
menor no reino de Deus é maior do que João”.
(Lc 7.28) O significado desta expressão é que Deus, ao restaurar o
mundo pela mão de Seu Filho, estabelece o Reino completamente.
Cristo
declara que, quando Sua Igreja fosse renovada, nenhum
mestre deveria ser aceito nela se não aqueles que são expositores
fiéis da Lei e que trabalham para manter sua doutrina inteiramente.
Mas alguém poderá perguntar se as cerimonias não estavam entre os
mandamentos de Deus que temos a obrigação de agora observar. Deus
estabeleceu as cerimonias para que seu
uso externo fosse temporário e seu significado eterno.
Não
transgridem as cerimônias aqueles que omitem as sombras, mas guardam
o que significam.
Mas se Cristo baniu de seu Reino todos os que acostumam os homens a
qualquer desprezo pela Lei, quão monstruosa é a estupidez daqueles
que não tem vergonha de remir, por uma indulgência sacrílega, o
que Deus exige estritamente e, sob a pretensão de pecado venial,
lançam fora a justiça da Lei! Novamente,
devemos observar a descrição que ele dá de mestres bons e justos,
que exortam os homens a guardar a Lei, não somente por palavras, mas
principalmente com um exemplo de vida.