"[...] E, correndo Filipe, ouviu que lia o profeta Isaías, e disse: Entendes tu o que lês? E ele disse: Como poderei entender, se alguém não me ensinar? E rogou a Filipe que subisse e com ele se assentasse. E o lugar da Escritura que lia era este: Foi levado como a ovelha para o matadouro; e, como está mudo o cordeiro diante do que o tosquia, Assim não abriu a sua boca. Na sua humilhação foi tirado o seu julgamento; E quem contará a sua geração? Porque a sua vida é tirada da terra. E, respondendo o eunuco a Filipe, disse: Rogo-te, de quem diz isto o profeta? De si mesmo, ou de algum outro? Então Filipe, abrindo a sua boca, e começando nesta Escritura, lhe anunciou a Jesus" (Atos 8:30-35)
Filipe
faz uma pergunta justa: Entendes tu o que lês? (v.30). Não
para repreender, mas com a intenção de lhe servir. Note que o que
lemos e ouvimos da palavra de Deus é para que a entendamos,
sobretudo o que lemos e ouvimos em relação a Jesus. Devemos nos
perguntar se entendemos ou não o que lemos: Entendestes todas
estas coisas? (Mt 13.51). Entendestes todas estas coisas
corretamente? Não podemos nos beneficiar com as Escrituras a
menos que as entendamos em certa medida (1 Co 14.16,17). E,
abençoadas por Deus, o que é necessário para a salvação é fácil
de ser entendido.
O
eunuco, sentindo necessidade de ajuda, deseja a companhia de Filipe:
“Como poderei entender, diz ele, se alguém não me
ensinar? (v.31). Sobe e senta-te comigo”.
(1)
O eunuco fala como alguém que tivesse opinião desfavorável sobre
si mesmo e duvidasse da própria capacidade e conhecimento. Ele
estava muito longe de considerar afronta alguém lhe perguntar se ele
entendia o que lia, embora Filipe fosse um estranho, estivesse a pé
e, provavelmente, parecesse pobre e humilde (por muito menos outra
pessoa teria dito que ele era impertinente, que cuidasse de sua
própria vida e que ele não era ninguém para dizer isso). Ele trata
a pergunta com amabilidade e dá uma resposta bastante humilde: “Como
poderei...?” Temos motivo para pensar que ele era inteligente e
bastante familiarizado com o significado das Escrituras, como a
maioria, mas mesmo assim confessa humildemente sua deficiência.
Note que para aprender tem de haver alguém que ensine. O profeta tem
de, primeiramente, reconhecer que não sabe o que é isto para que,
então, o anjo lhe diga (Zc 4.13).
(2)
O eunuco fala como alguém que possui muito desejo de aprender, de
ter alguém que o oriente. Note que ele lia as Escrituras, embora
houvesse muitas coisas nela que ele não entendesse. Mesmo que haja
na Bíblia muitos pontos difíceis de entender (2 Pe 3.16) e muitos
outros sejam interpretados erroneamente, não devemos desistir. Temos
de estudar os pontos difíceis por causa dos pontos fáceis, pois
este é o modo mais provável de, pouco a pouco, virmos a entender os
pontos difíceis: o conhecimento e a graça aumentam gradualmente.
(3)
O eunuco convidou Filipe para que subisse e com ele se assentasse
(v.31). Não como Jeú, que convidou Jonadabe para acompanhá-lo no
carro e ver o zelo que ele tinha para com o Senhor (2 Re 10.16), mas:
“Vem ver a minha ignorância, e instrui-me”. Ele
alegremente honrará Filipe, levando-o no carro, se Filipe lhe fizer
o favor de lhe expor um trecho das Escrituras. Note que para
entendermos corretamente as Escrituras precisamos de orientação:
alguns livros bons e alguns homens bons, mas, acima de tudo, o
Espírito da graça, para nos guiar a toda a verdade.
O
trecho das Escrituras que o eunuco recitou e algumas indicações de
Filipe a esse respeito
Os
pregadores do Evangelho tinham um pretexto muito bom para prender os
que estavam familiarizados com as Escrituras do Antigo Testamento e
as recebiam, sobretudo, quando se achavam empenhados em estudá-las,
como este eunuco.
O
capítulo que o eunuco estava lendo era Isaías 53. Aqui são citados
dois versos: partes dos versículos 7 e 8. Eles (vv. 32,33) estão
registrados de acordo com a versão da Septuaginta, a qual em certos
pontos difere do original hebraico. Grotius opina que o eunuco leu o
texto em hebraico, mas Lucas segue a tradução da Septuaginta, por
estar mais fluente à língua na qual ele escrevia. Ele supõe que o
eunuco aprendera a religião e a língua hebraica dos muitos judeus
que moravam na Etiópia. Mas, considerando que a versão da
Septuaginta foi elaborada no Egito, país adjacente à Etiópia, e
que se situava entre este e Jerusalém, prefiro pensar que a tradução
lhe era muito conhecida. O texto de Isaías 20.4 dá a entender que
as relações entre essas duas nações - Egito e Etiópia – eram
bastantes extensas. A maior variação do hebraico é a que está no
original: “Ele foi tirado da prisão e do julgamento” ([Is
53.8, LXX] quer dizer, ele foi levado com extrema violência e
precipitação de um tribunal a outro; ou: Da opressão e do juízo
foi tirado [Is 53.8, versão RC], quer dizer, ele foi tirado da
fúria do povo e seus clamores ininterruptos, e do julgamento de
Pilatos após), aqui está escrito: Na sua humilhação, foi
tirado o seu julgamento (v.33). Ele parecia tão vil e
desprezível aos olhos das pessoas que elas lhe negaram a justiça
comum. Indo contra todas as regras da imparcialidade, cujo
benefício todo indivíduo tem direito, mesmo tendo-o declarado
inocente, os homens o condenaram à morte. Assim, na sua
humilhação, foi tirado o seu julgamento. Vemos, então, que o
sentido é muito semelhante ao do hebraico. Portanto, este versículos
são predições relativas ao Messias.
(1)
O Messias morreria, seria levado [..] para o matadouro (v.32), como
as ovelhas eram oferecidas em sacrifício – que sua vida seria
tirada dentre os homens, tirada da terra. Com que pequena razão foi
a morte de Cristo uma pedra de tropeço para os judeus incrédulos,
visto que foi predita de forma tão clara pelos seus próprios
profetas e era tão necessária para a realização do seu
empreendimento! Logo, o escândalo da cruz está aniquilado
(Gl 5.11).
(2)
O Messias morreria injustamente, morreria por violência, seria
arrancado de sua vida, pois o seu julgamento seria tirado
(v.33). Não lhe seria feito justiça, porque Ele deveria ser tirado
e não seria mais (Dn 9.26).
(3)
O Messias morreria pacientemente. Como está mudo o cordeiro diante
do que o tosquia (v.32), não somente diante do tosquiador, mas
diante do açougueiro também, assim não abriu a sua boca. Nunca
haverá tal exemplo de paciência como o nosso Senhor teve em seus
sofrimentos. Quando Ele foi acusado, quando foi maltratado, ficou
calado, quando o injuriavam e, quando padecia, não ameaçava (1 Pe
2.23).
(4)
O Messias, apesar disso, viveria para sempre, por séculos que não
poderiam ser numerados. É como entendo essas palavras: Quem
contará a sua geração? (v.33). A palavra hebraica significa,
corretamente, “a duração de uma vida” (Ec 1.4). Não obstante,
quem pode conceber ou expressar quanto tempo Ele permanecerá? Porque
a sua vida é tirada somente da terra. No céu, Ele viverá pelos
séculos infinitos e inumeráveis, como consta em Is 53.10: Ele
prolongará os seus dias.
A
pergunta do eunuco sobre estas Escrituras é: De quem diz isto o
profeta? (v.4). Ele não deseja que Filipe lhe faça alguns
comentários criteriosos sobre as palavras, frases e expressões
idiomáticas da língua, mas que o inteire da extensão e desígnio
geral da profecia, que lhe dê uma chave, no uso da qual ele possa,
comparando uma coisa com a outra, ser conduzido ao significado da
passagem em particular. No geral, as profecias tinham em si algo de
ambiguidade, até serem explicadas pelo seu cumprimento, como ocorre
com esta. Tratava-se de uma pergunta muito importante e muito
sensata: “O profeta […] diz […] de si mesmo ou
de algum outro, na perspectiva de ser usado, de ser maltratado,
como foram os outros profetas? Ou ele fala de algum outro de
sua própria época, ou de alguma época vindoura?”.Embora os
judeus modernos não admitam que isto se refira ao Messias, os seus
antigos doutores assim o interpretavam. Talvez o eunuco soubesse
disso e em parte entendesse o texto assim, servindo-se desta pergunta
apenas para ocasionar a conversa com Filipe, pois o modo de
melhorar o aprendizado é consultar os instruídos. Como eles têm
de buscar a lei da boca do sacerdote (Ml 2.7), assim eles têm de
investigar o evangelho da boca dos ministros de Jesus (Filipe,
abrindo a boca, v.35), sobretudo aquela parte do tesouro que está
escondido no campo do Antigo Testamento. O modo de receber boas
instruções é fazer boas perguntas.
Filipe
aproveita esta excelente oportunidade para abrir ao eunuco o grande
mistério do evangelho relativo a Jesus Cristo e este crucificado
(1 Co 2.2). Ele começou nesta Escritura (v.35), tomando-a por seu
texto (como fez Jesus em outra passagem da mesma profecia, Lc 4.21),
e lhe anunciou a Jesus. Esta é a narrativa total que temos do sermão
de Filipe, porque na verdade era igual aos sermões de Pedro que já
temos. O trabalho dos ministros do evangelho é anunciar a Jesus, e
esta é a pregação mais provável de ser bem sucedida. É provável
que agora Filipe tivesse oportunidade de usar o seu dom de línguas
para pregar Jesus a este etíope no idioma de seu próprio país.
Aqui temos um exemplo de falar das coisas de Deus, falando delas
utilmente, não apenas quando nos assentamos em casa, m as também
quando andamos pelo caminho, de acordo com a regra deuteronômica (Dt
6.7).
(extraído de HENRY, Mattew. Comentário Bíblico Novo Testamento – Atos a Apocalipse. Rio de Janeiro: CPAD, 2008, 1ªed.)