Se
existem razões pelas quais um estudo das falácias exegéticas é
importante, há também razões pelas quais tal estudo é arriscado.
A
primeira delas é o fato de que um negativismo contínuo é
espiritualmente perigoso. Se a principal ambição da vida de alguém
é descobrir tudo o que está errado — seja com relação à vida,
seja no que diz respeito a algum componente dela, como por exemplo a
exegese — essa pessoa está se expondo à destruição espiritual.
Gratidão a Deus tanto pelas coisas boas quanto por Sua soberana
proteção e propósito, mesmo nos fatos ruins, é a primeira virtude
que se perde. A isso logo se seguirá a humildade, na medida em que o
crítico, conhecendo profundamente as falhas e falácias
(especialmente as dos outros!), começa a se sentir superior àqueles
que ele censura. Sentimento de superioridade espiritual não é uma
virtude cristã. O negativismo constante é um alimento altamente
energético para o orgulho. Tenho observado que os estudantes de
seminário, sem falar dos professores, não estão particularmente
livres desse perigo.
Por
outro lado, concentrar-se por muito tempo em erros e falácias pode
produzir um efeito bastante diferente em algumas pessoas. Para
aqueles que já são inseguros quanto a si mesmos ou estão
profundamente amedrontados pelas responsabilidades que pesam sobre os
ombros dos que foram comissionados para pregar todo o desígnio de
Deus, um estudo assim poderá levá-los ao desânimo, até mesmo ao
desespero. Um estudioso mais sensível poderia perguntar: "Se há
tantas armadilhas exegéticas e ciladas hermenêuticas, como posso
ter certeza de que estou interpretando e pregando as Escrituras da
maneira correta? Como posso evitar o terrível fardo de ensinar
alguma inverdade, depositar na consciência do povo de Cristo coisas
que Ele próprio não impõe ou eliminar aquilo que Ele insiste em
manter? Quantos danos poderei causar com minha ignorância e falta de
habilidade exegética?"
Para
tais estudiosos, só posso dizer que, se deixarem de se envolver em
um estudo assim, estarão cometendo mais erros do que se enfrentarem
as questões difíceis e aprimorarem suas habilidades. A grande
diferença é que no primeiro caso você não estará consciente de
suas falhas. Se estiver sinceramente preocupado com a qualidade de
seu ministério, e não somente com sua insegurança psicológica,
essa alternativa será inaceitável. A ignorância pode trazer
satisfação, mas não é nenhuma virtude.
O
perigo fundamental em todo estudo crítico da Bíblia encontra-se no
que os especialistas da hermenêutica chamam "distanciamento".
O distanciamento é um componente necessário do trabalho crítico;
contudo, é uma tarefa difícil e, às vezes, penosa. Poderemos
visualizar melhor o que está em risco se considerarmos um fenômeno
comum em seminários cristãos.
João
de Deus converteu-se quando estava no último ano do colegial. Ele
ingressou na faculdade e estudou computação; mas também trabalhava
com afinco em sua igreja e desfrutava de um ministério eficaz no
grupo local da ABU. Seus momentos de oração eram fervorosos e
freqüentes. Apesar de carências ocasionais não-supridas, quando
lia a Bíblia, em geral ele se sentia como se o Senhor estivesse lhe
falando diretamente. Ainda assim, havia muita coisa nas Escrituras
que ele não compreendia. Quando começou a ter firme convicção de
que deveria se comprometer com o ministério cristão em tempo
integral, sua congregação local confirmou sua percepção de dons e
chamado. Profundamente consciente de suas limitações, ele entrou
para o seminário com toda a ânsia de um novato.
Depois
de seis meses no seminário, o quadro é bem diferente. João gasta
várias horas por dia memorizando a morfologia grega e estudando os
detalhes do itinerário da segunda viagem missionária de Paulo. Ele
também começou a escrever trabalhos exegéticos; mas quando
consegue terminar seu estudo léxico, seu diagrama sintático, seu
levantamento de opiniões críticas e sua avaliação de evidências
incompatíveis, de alguma forma a Bíblia não lhe parece tão viva
como outrora. Ele está perturbado com isso; parece-lhe mais difícil
orar e dar seu testemunho agora do que antes de ir para o seminário.
Ele não sabe com certeza por que isso acontece — não acredita que
a culpa seja dos professores, muitos dos quais parecem ser cristãos
piedosos, bem informados e maduros.
O
tempo passa. João de Deus tem várias alternativas. Ele pode se
retirar para um pietismo defensivo que denuncie rudemente o
intelectualismo árido que vê a seu redor; pode ser sugado pelo
redemoinho de um tipo de compromisso intelectual que oprima a
adoração, a oração, o testemunho e a leitura de meditação das
Escrituras; ou pode cambalear de um lado para o outro até ser
resgatado pela colação de grau e voltar ao mundo real. Mas há um
caminho melhor? Será que tais experiências são um componente
essencial da vida no seminário?
A
resposta é sim em ambos os casos. Tais experiências são
necessárias; elas são causadas pelo distanciamento. Contudo,
entender o processo pode capacitar-nos a lidar com ele melhor do que
normalmente faríamos. Sempre que tentamos entender a linha de
pensamento de um texto (ou de alguma outra pessoa, quanto a essa
questão), para que possamos compreendê-lo criticamente — isto é,
sem nos basear em algum padrão arbitrário, mas com razões
profundas e de acordo com o significado original do autor — devemos
antes de mais nada captar a natureza e o grau das diferenças que
separam nosso discernimento daquele do texto. Somente então
poderemos fundir proveitosamente nosso horizonte de compreensão com
o do texto — isto é, somente então poderemos começar a moldar
nossos pensamentos pelos do texto, de forma a verdadeiramente
entendê-los. Deixar de passar pelo distanciamento antes da fusão
geralmente significa que não houve uma fusão real: o intérprete
acha que entende o sentido do texto, mas quase sempre simplesmente
impôs seus próprios pensamentos ao que foi lido.
Em
conseqüência, se uma instituição o ensina a pensar de maneira
crítica (no sentido que tenho usado esse termo), você
necessariamente enfrentará algum tipo de desarticulação e um
incômodo distanciamento. Uma instituição inferior pode não ser
tão perturbadora: os alunos são simplesmente levados a aprender,
mas não a avaliar.
O
distanciamento é difícil e pode ser penoso. Mas não posso deixar
de enfatizar veementemente que ele não é um fim em si mesmo. Seu
correlativo característico é a fusão de horizontes de compreensão.
Desde que tal parte da tarefa de interpretação seja alimentada com
o distanciamento, este não se mostrará destrutivo. De fato, a vida,
a fé e o pensamento cristãos que surgem deste processo de duplo
efeito serão mais fortes, espiritualmente alertas, perspicazes,
bíblicos e críticos do que normalmente aconteceria. Alguns passos
ao longo do caminho, porém, são perigosos; trabalhe seriamente para
a integração de sua caminhada e compromisso cristãos integrais, e
a essência deste estudo mostrar-se-á benéfica. Se você deixar de
lutar por tal harmonia, provocará um naufrágio espiritual.
[Extraído de “Os Perigos da Interpretação Bíblica” de D.A. Carson.]
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