[...] Percebe-se , assim, a importância do papel do educador,
o mérito da paz com que viva a certeza de que faz parte de sua tarefa docente não apenas ensinar os conteúdos, mas
também ensinar a pensar certo. Daí a impossibilidade de vir a tornar-se um
professor crítico se, mecanicamente memorizador, é muito mais um repetidor
cadenciado de frases e de ideias inertes do que um desafiador. O intelectual
memorizador, que lê horas a fio, domesticando-se ao texto, temeroso de
arriscar-se, fala de suas leituras quase como se estivesse recitando-as de
memória – não percebe, quando realmente existe, nenhuma relação entre o que leu
e o que vem ocorrendo no seu país, na sua cidade, no seu bairro. Repete o lido
com precisão mas raramente ensaia algo pessoal. Fala bonito de dialética mas
pensa mecanicistamente. Pensa errado. É como se os livros todos a cuja leitura
dedica tempo farto nada devessem ter com a realidade de seu mundo. A realidade
com que eles têm que ver é a realidade idealizada de uma escola que vai virando cada vez mais um dado aí, desconectado do concreto.
Não se lê criticamente, como se fazê-lo fosse a mesma coisa
que comprar mercadoria por atacado. Ler vinte livros, trinta livros. A leitura
verdadeira me compromete de imediato com o texto que a mim se dá e a que me dou
e de cuja compreensão fundamental me vou tornando também sujeito. Ao ler não me
acho no puro encalço da inteligência do texto como se fosse ela produção apenas
de seu autor ou de sua autora. Esta forma viciada de ler não tem nada que ver,
por isso mesmo, com o pensar certo e com o ensinar certo.
Só, na verdade, quem
pensa certo, mesmo que, às vezes, pense errado, é quem pode ensinar a pensar
certo. E uma das
condições necessárias a pensar certo é não estarmos demasiado certos de nossas certezas.
Por isso é que o pensar certo, ao lado sempre da pureza e necessariamente
distante do puritanismo, rigorosamente ético e gerador de boniteza, me parece
inconciliável com a desvergonha da arrogância de quem se acha cheia ou cheio de
si mesmo.
O professor que pensa certo deixa transparecer aos educandos
que uma das bonitezas de nossa maneira de estar no mundo, como seres
históricos, é a capacidade de, intervindo no mundo, conhecer o mundo. Mas,
históricos como nós, o nosso conhecimento do mundo tem historicidade. Ao ser
produzido, o conhecimento novo supera outro que antes foi novo e se fez velho e
se “dispõe” a ser ultrapassado por outro amanhã. Daí que seja tão fundamental
conhecer o conhecimento existente quanto saber que estamos abertos e aptos à
produção do conhecimento ainda não existente. Ensinar, aprender e pesquisar
lidam com esses dois momentos do ciclo gnosiológico: o em que se ensina e se
aprende o conhecimento já existente e o em que se trabalha a produção do
conhecimento ainda não existente. A “dodiscência”
– a docência-discência – e a pesquisa, indicotomizáveis, são assim práticas
requeridas por esses momentos do ciclo gnosiológico.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da
Autonomia: saberes necessários à prática educativa. Paz e Terra: São Paulo,
2011, pgs. 28-30.
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