Simonia
– a palavra pode ser nova para muitos leitores, mas a prática é
bastante antiga no âmbito do cristianismo. Na Idade Média, surgiu
uma série de distorções na vida do clero e na administração
eclesiástica. Três erros se destacaram por serem considerados
especialmente danosos. O primeiro foi o “nicolaísmo”, termo
derivado incorretamente de Apocalipse 2.15, o fato de que muitos
clérigos viviam em concubinato, violando assim os seus votos solenes
de castidade e celibato. A segunda prática condenada foram as
chamadas “investiduras leigas”, isto é, a interferência de
governantes civis (reis e imperadores) na nomeação e posse de altos
líderes eclesiásticos, como abades e bispos. O terceiro mal na vida
da igreja, esse certamente deletério sob todos os pontos de vista,
foi a “simonia”.
Esse
comportamento derivou o seu nome de Simão, o mágico, um personagem
bíblico que tentou comprar dos apóstolos Pedro e João o poder de
conceder o Espírito Santo àqueles sobre os quais ele impusesse as
mãos (At 8.18-24). Assim, a simonia veio a se referir à
concessão ou obtenção de qualquer coisa espiritual ou sagrada
mediante remuneração, fosse ela monetária ou de outra espécie.
Em outras palavras, era a compra e venda de coisas religiosas.
Cometia esse pecado quem oferecia e quem recebia pagamento em troca
de um bem espiritual ou eclesiástico. Na Idade Média, referia-se
principalmente ao comércio de cargos da igreja. Um papa que se
notabilizou por sua luta incessante contra esses males foi
Hildebrando, ou Gregório VII (1073–1085), que adotou como lema de
seu pontificado as contundentes palavras de Jeremias 48.10: “Maldito
aquele que fizer a obra do Senhor relaxadamente!”.
Curiosamente,
em certo sentido a Reforma Protestante surgiu como consequência de
dois casos de simonia. Um deles foi a compra do arcebispado de Mainz,
ou Mogúncia, na Alemanha, pela poderosa família Hohenzollern,
mediante uma negociação questionável com o papa Leão X envolvendo
altas somas de dinheiro. O segundo caso ocorreu quando o novo
arcebispo (e futuro cardeal) Alberto de Brandenburgo promoveu uma
venda especial de indulgências, cujos rendimentos foram utilizados
em parte para saldar a dívida da compra do arcebispado, sendo a
outra parte entregue ao papa para financiar a construção da
catedral de São Pedro, em Roma. A reação de Martinho Lutero contra
esse comércio do perdão, mediante suas Noventa e Cinco Teses, foi o
estopim da Reforma.
Durante
séculos, o ministério protestante foi caracterizado por elevados
padrões éticos, especialmente na sensível área das finanças.
Seguindo o exemplo de Cristo e seus apóstolos (At 20.33s; 2Co 11.7),
a maior parte dos pastores e líderes procuravam realizar o seu
trabalho como uma expressão de serviço desinteressado a Deus e às
pessoas, isento de ambições materiais. Mesmo indivíduos de grande
projeção, como avivalistas e evangelistas de massa (Wesley,
Whitefield, Spurgeon, Billy Graham e outros), jamais usaram de seu
grande carisma e influência para auferir vantagens pecuniárias e
aumentar o seu patrimônio. Tal comportamento sóbrio e consciencioso
ocorreu em todos os ramos do protestantismo, tanto os tradicionais ou
históricos como, mais tarde, os pentecostais clássicos.
Esse
honroso legado sofreu um abalo lamentável e constrangedor no Brasil,
a partir da década de 1970, com o surgimento do chamado
neopentecostalismo. Firmados numa teologia duvidosa, resultante de
uma interpretação tendenciosa e altamente seletiva das Escrituras,
os principais líderes desse movimento vêm demonstrando uma atitude
em relação ao dinheiro que em nada difere do velho pecado da
simonia. Servindo-se do poderoso veículo da televisão e manipulando
com habilidade as carências e ambições de uma considerável
parcela da população, esses pregadores têm transformado o
evangelho e suas bênçãos em mercadoria e fonte de lucro (2Co 2.17;
1Tm 6.5,10).
A
recepção de benefícios como a cura, a prosperidade e a felicidade
é condicionada à entrega de contribuições, dando-se a entender
que as bênçãos serão proporcionais à generosidade do ofertante.
Fica inteiramente esquecido o ensino claro de Jesus: “[...] de
graça recebestes, de graça dai” (Mt 10.8). Em consequência
disso, surgiu uma geração de pastores-empresários que estão se
colocando entre os homens mais ricos do país. Dominados pela
ganância condenada com tanta veemência nas Escrituras (1Ts 2.5; Tt
1.7; 1Pe 5.2), estão acumulando grandes fortunas na forma de
mansões, fazendas, carros de luxo e, agora, o símbolo máximo dos
novos ricos – jatinhos particulares. Eles influenciam de tal forma
os seus seguidores que estes, além de não questionarem tal
procedimento, acham que seus líderes merecem os privilégios que
usufruem.
Não
se discute que os obreiros cristãos sejam remunerados condignamente
pelo seu trabalho (2Co 8.14). O que se lamenta é a mercantilização
da fé, que tantos prejuízos tem trazido para a causa de Cristo ao
longo dos séculos, obscurecendo a graça de Deus, o seu favor
imerecido. Os modernos simoníacos não só estão manchando para
sempre a sua própria reputação, mas também contribuindo para
prejudicar a imagem de toda a classe ministerial e das comunidades
evangélicas. Suas ações têm produzido e continuarão a produzir
reações negativas da imprensa, da opinião pública e dos
governantes. Eles fariam bem em considerar as palavras ditas pelos
apóstolos a Simão, o mágico – e se arrependerem enquanto é
tempo.
Alderi
Souza de Matos é
doutor em história da igreja pela Universidade de Boston e
historiador oficial da Igreja Presbiteriana do Brasil. É autor de A
Caminhada Cristã na História e
"Os Pioneiros Presbiterianos do Brasil".
asdm@mackenzie.com.br
Fonte: Revista Ultimato, ed. 342
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