[por Ed René Kivitz]
O
evangelho é a superação da religião. O cristianismo é uma
religião. O evangelho é, portanto, a superação do cristianismo. O
silogismo proposto carece de esclarecimentos. Não pode ser
compreendido sem uma adequada noção dos conceitos de evangelho e
religião.
O
sociólogo venezuelano Otto Maduro, em seu livro “Religião” e
“Luta de Classes”, define religião como “conjunto de discursos
e práticas, referente a seres anteriores ou superiores ao ambiente
natural e social, em relação aos quais os fiéis desenvolvem uma
relação de dependência e obrigação”.
A
definição de Otto Maduro permite identificar dois importantes
aspectos do fenômeno religioso: seus fundamentos e sua lógica.
Quanto aos fundamentos, a expressão “conjunto de discursos e
práticas” aponta para as bases da religião: discursos, ou dogmas
– corpo doutrinário; rito, ou práticas litúrgicas; e tabu, ou
códigos morais. Considerados esses fundamentos, o evangelho não
pode ser classificado como religião.
Embora
tenha suas doutrinas e afirmações dogmáticas, a essência do
evangelho é o relacionamento com uma pessoa – Jesus Cristo –, e
não com um “conjunto de crenças” racional e cartesianamente
organizado: “Esta é a vida eterna: que te conheçam, o único Deus
verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste” (Jo 17.3). Em
relação aos ritos e práticas litúrgicas, sabemos que o evangelho
extrapola absolutamente o cerimonialismo religioso e torna obsoleto o
debate a respeito de onde e como adorar a Deus, pois “Deus é
espírito, e é necessário que os seus adoradores o adorem em
espírito e em verdade” (Jo 4.24). A adoração legítima e
autêntica é a consagração da vida como “sacrifício vivo, santo
e agradável a Deus” (Rm 12.1), em detrimento do que se faz nos
templos, até porque “Deus não habita em templos feitos por mãos
humanas” (At 7.48), tendo como morada (Ef 2.20-22) uma casa
espiritual construída com pedras vivas (1Pe 2.5).
Finalmente,
o evangelho, cujo novo mandamento é amar com o amor do Cristo (Jo
13.34), jamais poderá se classificar como tabu, ou régua reguladora
de comportamento moral, pois “no amor não há Lei” (Gl 5.22-23),
o que estabelece a proposta cristã como uma nova consciência,
baseada na mente (1Co 2.16) e na atitude do Cristo (Fp 2.5-11), que
extrapolam qualquer enquadramento moral ou legal.
Considerando
as categorias das ciências da religião que encaixam o fenômeno
religioso na moldura dos dogmas, ritos e tabus, é surpreendente que
o evangelho seja considerado religião. O evangelho é a superação
da religião. Não é adesão a dogmas, mas relação mística com o
Deus revelado em Jesus de Nazaré; não é celebrado em ritos, mas na
dinâmica do Espírito que faz da vida toda uma festa para a glória
de Deus; não se restringe à observação de regras comportamentais,
mas se estabelece a partir de uma profunda transformação do ser
humano, que é arrancado de si mesmo na direção de seu próximo em
amor.
A
definição de Otto Maduro permite também perceber a lógica
inerente ao fenômeno religioso: a “relação de obrigações e
benefícios” com os “seres superiores”. A religião se sustenta
na lógica da justiça retributiva: o fiel cumpre suas obrigações e
recebe a bênção; falha no cumprimento do que lhe compete no
contrato com a divindade e em troca recebe o castigo e a maldição.
A impossibilidade humana de atingir quaisquer que sejam os padrões
definidos pelos deuses, ou mesmo Deus, faz surgir necessariamente o
sistema sacrificial. Por definição, o divino está na categoria da
perfeição, enquanto o humano, da finitude e da imperfectibilidade
moral. Para escapar dos castigos e maldições, a religião oferece
os sacrifícios compensatórios, necessários para afastar a ira dos
deuses e conquistar seus favores.
O
evangelho é a superação das relações de mérito (justiça
retributiva) e dos sistemas sacrificiais. Jesus é “o Cordeiro de
Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 1.29), e inaugura uma nova
dimensão de relação entre Deus e os homens, não mais baseada no
mérito, mas na graça, a elegante opção autodeterminada de Deus de
abençoar “bons e maus, justos e injustos”, pois “Deus é amor”
(1Jo 4.8). Aquele que se apropria do evangelho sabe que “Aquele que
não poupou a seu próprio Filho, mas o entregou por todos nós”,
também “nos dará juntamente com ele, pela graça, todas as
coisas” (Rm 8.32), e desfruta a liberdade e a paz com Deus e a paz
de Deus (Rm 5.1; 8.1), pois “o amor lança fora todo o medo” (1Jo
4.18).
À
sombra da cruz do Calvário, onde o escandaloso amor de Deus é
revelado (Jo 3.16; 1Co 1.23), é surpreendente que o evangelho seja
encaixotado nas categorias da religião, que tem como fundamento as
“relações de obrigações e benefícios”, e sobrevive de
enclausurar corações e consciências nos limites estreitos do medo
e da culpa.
É
urgente a melhor compreensão dos termos que estabelecem a distinção
entre o evangelho de Jesus Cristo e o cristianismo compreendido nos
termos das ciências da religião. O cristianismo, como sistema
religioso organizado e institucionalizado, é culpado do pecado de
quebra do terceiro mandamento. O cristianismo, em qualquer período
da história e contexto sociocultural, se assemelha muito mais a
todos os demais fenômenos religiosos que ao evangelho que pretendeu
superar. É uma pena que os cristãos estejam, ainda hoje,
exageradamente apegados às discussões e aos debates dogmáticos,
aprisionados a cerimoniais ritualísticos templocêntricos e
clericais, quixotesca e desnecessariamente ocupados na tentativa de
subjugar e controlar moralmente o comportamento social, e
tristemente, escravizados pelos sistemas sacrificiais e meritórios,
que não fazem mais do que multiplicar as fileiras dos “decepcionados
com Deus”.
Chegou
o tempo quando homens e mulheres que serão tomados por loucos devem,
em plena manhã, acender uma lanterna, correr aos templos cristãos e
gritar incessantemente: “Onde estão aqueles que não se
envergonham do evangelho?”.
Fonte: Revista Ultimato, ed.
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