Paulo Freire
Outro
saber que devo trazer comigo e que tem que ver com quase todos os de
que tenho falado é o de que não é possível exercer a atividade do
magistério como se nada ocorresse conosco. Como impossível seria
sairmos na chuva expostos totalmente a ela, sem defesas, e não nos
molhar. Não posso ser professor sem me por diante dos alunos, sem
revelar com facilidade ou relutância minha maneira de ser, de pensar
politicamente. Não posso escapar à apreciação dos alunos. E a
maneira como eles me percebem tem importância vital para o meu
desempenho. Daí, então, que uma de minhas preocupações centrais
deva ser a de procurar a aproximação cada vez maior entre o que eu
digo e o que eu faço, entre o que pareço ser e o que realmente
estou sendo.
Se
perguntado por um aluno sobre o que é “tomar distância
epistemológica do objeto”, lhe respondo que não sei, mas que
posso vir a saber, isso não me dá a autoridade de quem conhece, me
dá a alegria de, assumindo minha ignorância, não ter mentido. E
não ter mentido abre para mim junto aos alunos um crédito que devo
preservar. Eticamente impossível teria sido dar uma resposta falsa,
um palavreado qualquer. Um chute, como se diz popularmente.
Mas, de um lado, precisamente porque a prática docente, sobretudo
como a entendo, me coloca a possibilidade que devo estimular
perguntas várias, preciso me preparar ao máximo para, de outro,
continuar sem mentir aos alunos, de outro, não ter de afirmar
seguidamente que não sei.
Saber
que não posso passar despercebido pelos alunos, e que a maneira como
me percebam me ajuda ou desajuda no cumprimento de minha tarefa de
professor, aumenta em mim os cuidados com o meu desempenho.
Se
a minha opção é democrática, progressista, não posso ter uma
prática reacionária, autoritária, elitista. Não posso discriminar
o aluno em nome de nenhum motivo. A percepção que o aluno tem de
mim não resulta exclusivamente de como atuo, mas também de como o
aluno entende como atuo. Evidentemente, não posso levar meus dias
como professor a perguntar aos alunos o que acham de mim ou como me
avaliam. Mas devo estar atento à leitura que fazem de minha
atividade com eles. Precisamos aprender a compreender a significação
de um silêncio, ou de um sorriso ou de uma retirada da sala. O tom
menos cortês com que foi feita uma pergunta. Afinal, o espaço
pedagógico é um texto para ser constantemente “lido”,
interpretado, “escrito” e “reescrito”. Neste sentido, quanto
mais solidariedade exista entre o educador e educandos no “trato”
deste espaço, tanto mais possibilidades de aprendizagem democrática
se abrem na escola.
Creio que nunca precisou o professor progressista estar tão advertido quanto hoje, em face da esperteza com que a ideologia dominante insinua a neutralidade da educação. Desse ponto de vista, que é reacionário, o espaço pedagógico, neutro por excelência, é aquele em que se treinam os alunos para práticas apolíticas, como se a maneira humana de estar no mundo fosse ou pudesse ser uma maneira neutra.
Minha presença de professor, que não pode passar despercebida dos alunos na classe e na escola, é uma presença em si política. Enquanto presença, não posso ser uma omissão, mas um sujeito de opções. Devo revelar aos alunos a minha capacidade de analisar, de comparar, de avaliar, de decidir, de optar, de romper. Minha capacidade de fazer justiça, de não falhar à verdade. Ético, por isso mesmo, tem que ser o meu testemunho.
(FREIRE,
Paulo. Pedagogia da
Autonomia: saberes necessários à prática educativa.
São Paulo: Paz e e Terra, 2011, pgs. 94-96.)
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