Um dos pontos mais controversos no debate sobre a relação entre a Bíblia e a literatura é a questão da autoria. Tanto judeus – no caso da Torah – quanto cristãos alegam que a Bíblia tenha sido inspirada por Deus, alegação esta que o próprio texto sagrado afirma e corrobora quando fala de si mesmo. Os cristãos são ainda mais ousados do que os judeus nesse ponto quando afirmam que uma das provas de que a Bíblia é inspirada por Deus é o fato de que ela gira toda em torno de um personagem central – Jesus Cristo é tido como a chave que unifica o Antigo Testamento (AT) e o Novo Testamento (NT) para além das suas diferenças de conteúdo e de imagem de Deus. Ele é o cumprimento vivo das profecias do AT, em que é mais conhecido como Messias. Alguns judeus compreenderam tão bem esse ponto do AT que continuam esperando pelo Prometido até os dias de hoje. Essa é a diferença básica entre cristãos e judeus. Os primeiros reconhecem Jesus Cristo como sendo quem ele alegava ser, o Filho de Deus, sua encarnação, para escândalo de grande parte dos judeus.
O
fato de a Bíblia ter sido escrita ao longo de centenas de anos por
diversas mãos – a maioria delas anônimas – com diferentes
backgrounds
profissionais
e geográficos é considerado motivo para as suspeitas daqueles que
só creem no que tocam ou no que leva o carimbo da Ciência. A Bíblia
foi escrita por 40 pessoas, ao longo de 16 séculos, embora até
nisso haja controvérsias, uma vez que alguns livros são de autoria
e datação incerta.
Usualmente,
pessoas assim também resistem ao novo paradigma da incerteza em toda
a ciência e/ou desconfiam da validade da literatura oral e do senso
comum em geral. Querem muitas vezes com isso evitar se misturar com o
povo e seu conhecimento de "segundo calão".
Já
aqueles que se dão ao trabalho de uma leitura mais atenta da Bíblia
notarão a estranha coerência interna que torna esse livro tão
misterioso, fascinante e poderoso. Muitas vezes essa coesão não
pode ser vista logo na primeira leitura, o que, por sua vez, faz com
que até aqueles que dificilmente leriam um livro mais de uma vez,
não resistam a voltar a abri-lo. E quem decide estudá-lo para
valer, de maneira, por assim dizer, "científica", notará
que nem tudo são mistérios em torno desse livro. Não raro, estes
também acabam por se render à forte e assustadora intuição de que
ela seja fruto de uma só mente: Deus.
É
claro que não temos pretensão alguma aqui de querer identificar o
estilo literário de Deus, como se pode identificar o de um pintor ou
de um músico, o que não deixa de ser um excelente exercício. Se
até Tomás de Aquino se dizia incapaz de "esgotar sequer a
essência de uma mosca", uma das menores criaturas da
natureza, imagine a de Deus! A face divina e a maneira de Deus agir
são coisas ao mesmo tempo tão distantes e tão próximas de nós
que vivem escapando por entre os dedos das mãos.
O
sentimento que se tem diante do estilo de Deus é muito parecido com
o que nos invade no trabalho de crítica literária quando se quer
conhecer mais a fundo determinado autor "real" ou
determinada língua, particularmente quando se trata de poesia ou
literatura imaginativa em geral (mitos, contos de fada, provérbios,
etc.) Esse sentimento de maior ou menor familiaridade ou
estranhamento explica, inclusive, porque não é preciso ser
especialista para desenvolver um certa intimidade com esse
inexaurível Autor. Nós aprendemos a conhecê-lo como conhecemos
certas pessoas do nosso cotidiano: pela postura, tom de voz, olhar,
etc. – e, no caso, por meio da literatura e da ficção. Ou seja,
para entendermos o jeito de ser de alguém, o pressuposto necessário
é a convivência
e
a linguagem
comum,
o nível de interlocução,
isto é, de comunicação,
que temos com ela. Na literatura, à semelhança do que acontece
quando nos vemos deparados com a Bíblia, dá-se algo parecido. De
tanto viver com certos autores e estilos, nós conseguimos, com
grande chance de acerto, reconhecer ou discernir certas atitudes que
são típicas a eles, e outras que destoam definitivamente.
No
entanto, apesar de sermos capazes de reconhecer o estilo dos
personagens criados por um autor e, por reflexo também, o do próprio
autor, que se espelha de forma mais ou menos nítida em todos os
personagens, não devemos recair no reducionismo, achando que podemos
"classificá-los" de alguma forma predeterminada. Pois todo
personagem é, antes de ser produto da imaginação humana,
proveniente em última instância do Criador que a todos "inventou"
imprimindo-lhes a Sua Imagem. Essa pode ser uma boa explicação para
o poder de influência desse livro tão sui
generis,
a Bíblia, para além dos seus mistérios. E se nós já cremos na
Bíblia como Palavra inspirada pelo próprio Deus, quanto mais não a
estaremos apreciando quando a reconhecermos, além disso, também
como excelente obra literária que é e que nos remete a outras obras
muito saudáveis como, por exemplo, “As
Crônicas de Nárnia” e
outros tantos clássicos da literatura mundial.
É
claro que não podemos reduzir a Bíblia à literatura ou submetê-la
às rígidas classificações de gênero, mesmo porque ela não cabe
em nenhum deles, ao mesmo tempo em que cabe em todos eles. Mas
acreditamos ter com essa aproximação entre a literatura e o estudo
da Bíblia, ter dado uma vaga noção da riqueza desse diálogo e do
estilo surpreendente que se encontra por trás de sua infinidade de
autores, que diz respeito a toda a humanidade. Ou pelo menos,
esperamos ter contribuído para melhorar a imagem que fazemos daquele
de quem somos imagem.
Autor:
Gabriele Greggersen
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