Você
certamente já ouviu algum pregador pentecostal orando para que a
plateia ou uma pessoa específica recebesse a “porção dobrada do
Espírito Santo”. A base é 2 Reis 2, mas a interpretação é
equivocada. Nesse texto, temos a história do profeta Elias
designando a continuidade de seu ministério para Eliseu antes de ser
transladado. Nos versículos 9 a 11 lemos:
“Sucedeu, pois, que,
havendo eles passado, Elias disse a Eliseu: Pede-me o que queres que
te faça, antes que seja tomado de ti. E disse Eliseu: Peço-te que
haja porção dobrada de teu espírito sobre mim. E disse: Coisa dura
pediste; se me vires quando for tomado de ti, assim se te fará;
porém, se não, não se fará. E sucedeu que, indo eles andando e
falando, eis que um carro de fogo, com cavalos de fogo, os separou um
do outro; e Elias subiu ao céu num redemoinho”.
Bom,
vejamos o que a expressão “porção dobrada” significa.
1.
Quando Eliseu pede a “porção dobrada”, na verdade, ele está
requerendo o direito de progenitura sobre os demais profetas da
escola de Elias.
Elias
foi líder de uma “escola de profetas”, e Eliseu era um dos seus
alunos. O ambiente da escola lembrava uma fraternidade onde os
membros eram chamados de “filhos dos profetas” (v. 3,5). Ora, com
a trasladação de Elias quem seria o seu substituto? Ou seja, quem
havia de ser o novo líder? Então, Eliseu baseado na lei mosaica
(cf. Dt 21.17) pede a Elias a “porção dobrada”, ou seja, os
direitos de um filho primogênito. O primeiro filho recebia o dobro
das riquezas do pai em relação aos seus irmãos, e isso implicava
mais responsabilidade para a manutenção da família. Donald J.
Wiseman lembra que esse filho primogênito “tinha a
responsabilidade de perpetuar o nome e o trabalho do pai” [1].
Nesse
sentido, a tradução da Nova Versão Internacional (NVI) traz mais
luz para a interpretação: “Depois de atravessar, Elias disse a
Eliseu: ‘O que posso fazer por você antes que eu seja levado para
longe de você?’ Respondeu Eliseu: ‘Faze de mim o principal
herdeiro de teu espírito profético’".
2.
A “porção dobrada”, portanto, em um primeiro momento, não
significava “mais poder” para milagres. Significa, isso sim, mais
responsabilidade como o novo líder a representar o legado do antigo
líder. Assim, por que os pregadores atuais falam em “porção
dobrada” como “poder em dobro” para milagres, mas esquecem da
responsabilidade de um legado na substituição de uma liderança?
Repito:
a expressão não significa, a princípio, um poder dobrado para
milagres ou um ministério ainda mais poderoso em sinais e maravilhas
do que o de Elias. É tão verdade que Eliseu continua o trabalho de
Elias, mas não se tornou um profeta mais importante do que o seu
“pai espiritual”. Ele é usado por Deus em continuidade, mas não
se sobrepõe ao seu pai na fé. Quem é o profeta mais lembrado
depois de Moisés na história e literatura hebraica? Elias é a
resposta. Eliseu certamente pensava que a continuidade do ministério
de Elias implicaria grandes sinais, mas a expressão em si não
indica essa questão, mas sim o direito de substituí-lo como líder.
3.
Elias não concede o pedido a Eliseu porque tal atribuição era
divina, e não humana. Como os pregadores atuais podem oferecer o
que não é prerrogativa deles?
Eliseu
recebe a “porção dobrada” da parte de Deus, mas não de Elias.
O profeta Elias mostra a Eliseu que a resposta ao pedido não
dependia dele, mas sim do Senhor. “Coisa dura pediste”, diz
Elias, indicando que Eliseu seria o seu substituto mediante a
observação de seu arrebatamento. O teólogo pentecostal Wilf
Hildebrandt escreve sobre essa passagem:
“A dificuldade de honrar o
pedido é demonstrada por Elias, que faz com que o direito de
sucessão dependa do avistar de sua partida por parte de Eliseu.
Elias indica que não é uma prerrogativa sua o responder ao pedido e
sim uma prerrogativa de Deus. Assim, o pedido por “uma porção
dupla” não é concedido por ele, mas depende da permissão de
Iahweh para que Eliseu testemunhe sua partida e ‘abra os seus
olhos’ para a seleção de Deus. Somente Deus poderia escolher um
sucessor para Elias e transferir se o Espírito para o profeta
escolhido. [2]”
É
interessante observar que um pregador que acredita atribuir o
Espírito Santo em dobro para outras pessoas não traz essa ideia da
cosmovisão bíblica, mas sim de uma cosmovisão animista, portanto,
pagã. É necessário rejeitar qualquer tentativa de interpretar o
texto bíblico segundo padrões mágicos que arranham a correta
interpretação do mesmo. Ninguém pode “jogar” o Espírito Santo
em dobro no outro. O Espírito Santo enche o verdadeiro crente
segundo a graça divina para o serviço do Senhor. “Mas a
manifestação do Espírito é dada a cada um, para o que for útil”
[1 Co 12.7].
Referências
Bibliográficas:
[1]
WISEMAN, Donald J. 1 e 2 Reis. Introdução e Comentário. 1 ed. São
Paulo: Edições Vida Nova, 2006. p 172.
[2]
HILDEBRANDT, Wilf. Teologia do Espírito de Deus no Antigo
Testamento. 1 ed. São Paulo: Editora Academia Cristã e Edições
Loyola, 2008. p 195.